Escavação coordenada por pesquisadores da USP retoma estudos no Sambaqui Jabuticabeira II, em Jaguaruna, um dos sítios arqueológicos mais importantes do país.
As escavações arqueológicas no Sambaqui Jabuticabeira II, em Jaguaruna, voltaram a movimentar a região neste mês. Coordenado pela professora Ximena Villagran, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho integra o projeto “As Sociedades Costeiras do Brasil Pré-Colonial”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
O objetivo, explica Ximena, é investigar a diversidade cultural dos povos que habitaram o litoral brasileiro antes da chegada dos colonizadores, e compreender de forma mais profunda como essas sociedades se organizavam, se alimentavam e se relacionavam com o ambiente e com outros grupos do interior.
“O tipo de sítio arqueológico mais frequente e conhecido na costa são os sambaquis, mas por muito tempo a arqueologia tratou essas sociedades como uma unidade cultural. Nosso projeto busca mostrar que há uma diversidade muito maior entre os grupos que ocuparam o litoral”, afirma a pesquisadora.
Um retorno a um sítio emblemático
O Sambaqui Jabuticabeira II é considerado o mais estudado do litoral brasileiro e um verdadeiro laboratório de pesquisa sobre os povos sambaquieiros. O sítio, explica Ximena, já foi escavado entre 1996 e 2006 sob coordenação do professor Paulo De Blasis, também do MAE-USP, e revelou informações essenciais sobre a vida e os costumes das antigas populações costeiras.
“O Jabuticabeira II é um sítio emblemático. Quando anunciamos a retomada das escavações, recebemos um número recorde de voluntários, estudantes e pesquisadores de todo o país. É um privilégio poder voltar a um local tão importante e com o qual tenho uma ligação afetiva, já que fiz meu mestrado aqui, em 2005”, recorda a arqueóloga.
As pesquisas anteriores mostraram que o local funcionava como um grande cemitério monumental, com estimativas de até 43 mil indivíduos sepultados. A densidade de achados humanos e materiais torna o sítio um dos mais ricos do Brasil em termos de informação arqueológica.
O trabalho de campo
As escavações seguem um protocolo detalhado de trabalho de campo, desenvolvido por Ximena Villagran. Segundo o coordenador de campo do projeto, Anderson Tognoli, a escavação ocorre por fácies arqueológicas, definidas pela composição, cor e elementos do sedimento.
“Os registros são realizados em fichas e cadernos de campo. Depois, coletamos o material e encaminhamos para o laboratório, onde começa a curadoria”, explica Tognoli.
A curadoria inclui pesagem, limpeza com água (flotação), secagem natural e checagem de informações de campo, como localização e identificação dos vestígios. Todo material é armazenado em sacos e caixas plásticas, garantindo a preservação para análises posteriores.
Interdisciplinaridade: uma chave para entender o passado
O trabalho no Jabuticabeira II envolve pesquisadores de diferentes áreas, o que permite uma compreensão mais completa do sítio.
“A presença de pesquisadores de áreas distintas contribui de forma significativa para a pesquisa. Especialistas em malacologia identificam as espécies de conchas, enquanto os especialistas em material lítico analisam rochas e minerais usados na confecção de utensílios. Geólogos ajudam a entender a composição do sedimento e a presença de vestígios humanos. Bioarqueólogos estudam ossos humanos, trazendo informações sobre idade, sexo e possíveis paleodoenças”, detalha Tognoli.
O trabalho conjunto permite reconstruir o modo de vida das populações antigas, sua dieta, hábitos e rituais funerários.
A fauna e os sinais do passado
Entre os pesquisadores está o médico veterinário José Heitzmann Fontenelle, que atua como zooarqueólogo em conjunto com Profa. Daniela Klökler, da UFMG, estudando a fauna presente no sambaqui, principalmente moluscos como ostras, berbigões e caracóis gigantes, não só como resto de alimento mas tambem como remanescente de atividades rituais e festins funerários.
“Eles não coletavam conchas aleatoriamente. Havia uma seleção intencional das espécies para a construção das camadas de conchas. Isso nos ajuda a entender a dieta, a exploração de recursos e até mudanças ambientais ao longo do tempo”, explica Fontenelle.
O estudo da fauna permite reconstruir o paleoclima e a presença de ecossistemas como mangues, que mudaram ao longo dos séculos.
Mistura populacional e genética
Estudos recentes de DNA antigo, liderados pelo Prof. André Strauss, do MAE/USP mostraram que, há cerca de 1.200 anos, já havia mistura entre indivíduos costeiros e grupos do Planalto, refletindo interações complexas entre populações:
“A genética permite entender se houve mistura populacional entre grupos. Nesse caso, detectamos claramente a combinação de genéticas sambaquis e do Planalto, mostrando que o contato entre os povos não foi repentino, mas escalonado”, explica Villagran.
Além da genética, pesquisas com isótopos estáveis e zooarqueologia permitem reconstruir a dieta, revelando os animais consumidos e os rituais associados aos sepultamentos. O estudo dos padrões funerários em campo é conduzido pela Profa. Verônica Wesolowski, do MAE/USP.
Um patrimônio para a comunidade
O Jabuticabeira II não é apenas um ponto de pesquisa científica, mas também um patrimônio histórico:
“O Jabuticabeira II se transformou em um sítio-guia. É a referência que usamos para comparar outras áreas litorâneas. Além disso, contribui para a preservação e valorização do patrimônio arqueológico catarinense, sendo visitado por escolas e pela comunidade local”, afirma Villagran.
A região de Jaguaruna concentra uma densidade inédita de sambaquis monumentais, consolidando-se como um núcleo arqueológico de relevância nacional.